Como em um tabuleiro de xadrez, Piauí e Ceará traçam estratégias e pensam cada movimento com cautela. Piauienses fazem uma corrida por mapas antigos, percorrendo arquivos ao redor do mundo. O estado vizinho mobiliza comunidades e apela para a cearensidade dos territórios em disputa.
Das escarpas da serra da Ibiapaba, região montanhosa que separa os estados do Piauí e Ceará, desponta o principal litígio entre unidades da Federação em curso no Brasil. A disputa de mais de 260 anos se transformou em batalha judicial em 2011 e caminha para um desfecho no STF (Supremo Tribunal Federal).
A área em litígio envolve 13 municípios do Ceará, 9 do Piauí e um território de 3.000 km², o equivalente a duas cidades de São Paulo. Cerca de 25 mil pessoas moram na região, que é considerada uma joia pelo potencial econômico para o agronegócio, mineração e energia eólica.
O Exército entregará ao STF até 28 de junho um laudo pericial que analisa mapas históricos, decretos imperiais e inclui visitas de campo à região em disputa pelos dois estados. O laudo servirá para embasar o voto da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso no Supremo.
Um dos pontos centrais da disputa é a região da Serra da Ibiapaba. A tese piauiense é que a divisa entre os dois estados fica no ponto mais alto da cadeia de montanhas. O Ceará, por sua vez, alega que o marcador geográfico é o sopé do lado oeste, onde começariam as terras do estado vizinho.
Na ação que moveu junto ao STF, o Piauí apresentou 17 documentos, entre cartas, alvarás, decretos e mapas históricos de 1754 a 1913. Um dos mapas mais relevantes é o produzido em 1760 pelo engenheiro Henrique Antonio Galúcio, que marca a divisa pelo alto da serra da Ibiapaba.
Outro destaque é um decreto de Dom Pedro 2º, de 1880, que determina mudanças nos territórios entre Piauí e Ceará. O povoado de Amarração, no litoral, foi indicado como parte do Piauí, enquanto os cearenses absorveram a comarca de Príncipe Imperial, onde fica o atual município de Crateús.
O documento afirma as vertentes ocidentais da serra pertenceriam ao Piauí, e as orientais seria de posse cearense. Os piauienses defendem que o documento indica a delimitação da divisa no topo da serra, mas diz que esta divisão se refere apenas ao trecho da divisa na região de Crateús, objeto da carta régia.
O procurador Lívio Bonfim, da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário do Piauí, afirma que a definição das divisas dará segurança jurídica e não vai interferir no dia a dia da população da região. "Ninguém vai deixar de ser cearense, ninguém vai perder a sua naturalidade, o que muda é a titulação das terras."
A defesa do Ceará também apresenta seus trunfos entre documentos e mapas históricos que, afirmam, visam "desconstruir narrativas produzidas pelo estado do Piauí". Além disso, também apresenta aspectos relacionados à cultura da população que vive na região em disputa.
A Procuradoria Geral do Estado citou o geógrafo baiano Milton Santos e destacou que o conceito de território "transcende sua dimensão geográfica e abarca um universo mais profundo": o chão da população, onde se manifestam identidades, conexões e sentimentos de pertencimento.
"Os moradores dessas áreas, ao longo das gerações, desenvolveram laços com o lugar que chamam de lar de forma que as suas histórias pessoais se entrelaçam com a história do território, revelando uma forte conexão cultural dos moradores da área de litígio com o estado do Ceará", afirmou a Procuradoria.
Com a batalha judicial em curso, os estados trocam acusações mútuas de territórios invadidos para além daqueles que estão em litígio.
O pesquisador Eric Melo, que defendeu uma dissertação de mestrado sobre o conflito de terras na região, cita um expansionismo cearense e diz que o estado vizinho teria avançado sobre outros 507 km² do Piauí. A área seria equivalente ao município de Maceió (AL).
O Ceará diz que os mapas apresentados pelo Piauí visam "sustentar uma narrativa de invasão" que não condiz com a realidade. E vai além, apresentando um estudo que mostra que o Piauí que teria avançado sobre territórios que seriam do Ceará. O governo informou que não vai reivindicar essas áreas.
O ambientalista Dionísio Carvalho, que percorreu mais de 1.300 km por comunidades da região, diz que a guerra de versões prejudica o debate e acirra o confronto entre as comunidades nos dois estados.
Nas comunidades que estão sob disputa, o clima é de receio entre os moradores do lado cearense, que temem equipamentos públicos e o acesso a políticas desenvolvidas pelos municípios e o governo do estado.
"Temos uma história de lutas e de conquistas de políticas públicas para a nossa comunidade", afirma a agente de saúde Antonieta dos Santos, 51, uma das líderes da comunidade quilombola Três Irmãos, que fica entre Ipueiras e Croatá (CE).
A comunidade abriga 19 famílias que vivem da agricultura de subsistência. A cidade de referência para a comunidade é Croatá, cuja zona urbana fica a 23 km. O município do Piauí mais próximo é Pedro 2º, a 52 km.
Moradora da Aldeia Cajueiro, onde vivem indígenas da etnia Tabajara em Poranga (CE), a professora Eliane da Silva Gomes, 45, afirma que a comunidade de 21 famílias sempre teve conexão com o Ceará.
"Para a gente seria confuso ter uma vida e uma história como parte do Ceará e, de repente, ter que virar piauiense. A gente respeita a população do Piauí, mas é um estado que nunca ligou para a gente", afirma a líder indígena.
Prefeitos da região enfrentam dilemas ante o cenário de indefinição. Prefeita do município Pedro 2º, no Piauí, Betinha Brandão (PP) planejava construir uma estrada para a localidade Tapera dos Vital, que a comunidade entende ser do Piauí, mas descobriu ao consultar os mapas que a área pertenceria ao Ceará.
Para além da discussão cartográfica e sobre pertencimento, a disputa entre os dois estados também tem um pano de fundo econômico.
A região possui 1.006 empreendimentos agropecuários que produzem tomate, maracujá, batata-doce, flores e hortaliças, movimentando cerca de R$ 1,5 bilhão por ano.
A Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Ceará estima que os territórios da Serra da Ibiapaba representem cerca de 30% da produção agrícola do estado e 50% de toda a agricultura irrigada cearense. E destaca que o governo viabilizou estradas, infraestrutura hídrica e de energia para a produção.
A área também tem potencial de produção de energia eólica e abrigava em 2022 um total de 291 aerogeradores, sendo 81 em operação, segundo dados da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Ao todo, 11 parques eólicos operam na região e outros 34 já estão contratados.
A mineração é outro setor com possibilidade de crescimento, com reservas de ouro, cobre, manganês, dentre outros, que estão em fase de licenciamento, autorização de pesquisa ou requerimentos de lavra.
Morador do povoado Cachoeira Grande, em Poranga (CE), o agricultor Antonio Carlito Bezerra, 36, usa os serviços de saúde de Pedro 2º, no Piauí. Indiferente aos mapas, pesquisas e propaganda de lado a lado, quer o fim da disputa entre os estados-irmãos.
"Quando uma pessoa adoece não quer saber se é do Ceará ou do Piauí. Só queremos que acabe essa briga."
Capitania no Piauí - 1718: Criação da Capitania no Piauí, a partir de desmembramento do Maranhão.
Nação indígena - 1721: Carta régia emitida pelo Rei de Portugal, D. João 5º, estabeleceu que a Serra da Ibiapaba seria destinada à nação indígena Tabajara, situada no Ceará.
Mapa - 1760: Engenheiro Henrique Antônio Galúcio produz o primeiro mapa da capitania do Piauí, que inclui as terras da Serra da Ibiapaba.
Capitania do Ceará - 1799: Carta régia determina a criação da Capitania do Ceará, a partir de desmembramento de Pernambuco.
Mudanças nos territórios -1880: Decreto assinado pelo Imperador Dom Pedro 2º determina mudanças nos territórios entre Piauí e Ceará. O povoado de Amarração, no litoral, foi indicado como parte do Piauí, enquanto os cearenses absorveram a comarca de Príncipe Imperial, onde fica o atual municípios de Crateús.
Convenção arbitral - 1920: Presidente Epitácio Pessoa determina a instalação de uma Convenção Arbitral entre o Piauí e o Ceará para mediar o conflito, mas não há avanços nas negociações entre as partes.
Área de litígio - 1940: Mapa produzido a partir do Censo daquele ano delimita a área de litígio, que aparece como não pertencendo a nenhum dos dois estados.
Censo do IBGE - 2010: Mapa desenvolvido pelo IBGE deixa de apresentar a área de litígio e coloca territórios em disputa como parte do Ceará.
Piauí no STF - 2011: Após tentativas fracassadas de acordos entre os governos estaduais, o estado do Piauí ingressa com no STF com ação cível originária na qual pleiteia a posse dos territórios em litígio.
Exército acionado - 2016: Ministro Dias Toffoli determina que Exército realize perícia técnica dos territórios em litígio.
Entrega de perícia - 2024: Após atrasos nos estudos em decorrência da pandemia, Exército avança na perícia e promete entrega do relatório até o dia 28 de junho.